sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A economia real vai fazer a diferença



Com a crise, começa uma nova fase da economia mundial, marcada pela busca frenética por competitividade. No Brasil, empresas e setores inteiros têm condições de vencer esse jogo

O executivo dinamarquês Joakim Thrane, presidente da filial brasileira da DHL Express, multinacional de logística, observou uma mudança no perfil de seus negócios nas últimas semanas. Vários clientes, de setores que vão do têxtil ao de carnes, começaram a solicitar mais os serviços da DHL para despachar amostras de produtos para o exterior. "São empresas que estão correndo atrás de novos contratos na América Latina, no Oriente Médio e mesmo na Europa e nos Estados Unidos", afirma Thrane. Desde a eclosão da atual crise - um evento que, como definiu o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, faz os eventos do final da década de 90 parecerem hoje um passeio na praia -, os esforços de vendas foram redobrados. E eles ocorrem na proporção inversa do ânimo dos consumidores para gastar. O caso mostra como a tormenta financeira global, com suas oscilações diárias de índices, já deixou o mundo das bolsas de valores e dos fundos de hedge e está se disseminando rapidamente pela economia real. Pode ser pela variação do câmbio. Ou como conseqüência da restrição do crédito e do aumento do custo do dinheiro. Ou ainda pela retração do consumo. A vida ficou mais dura, e qualquer ilusão de que a crise seria passageira já foi devidamente destruída pelos fatos. Agora, a hora é de se preparar para lidar com o inevitável. Haverá perda de vendas? Haverá perda de rendimentos? Haverá perda de empregos? Num plano amplo, a resposta - como já indicam dados recentes - é sim para as três perguntas. Mas o mundo vai acabar e nada mais resta a fazer? Obviamente, não. Mais que isso, há até como ganhar, ou pelo menos se posicionar para sair fortalecido quando a roda da economia mundial voltar a girar mais depressa. A crise acentua o processo natural de seleção que caracteriza o mundo dos negócios: só os mais competentes e competitivos sobrevivem. Mesmo os mais acostumados aos desafios devem redobrar seus esforços. Olhe para o que acontece na Vale, maior empresa privada brasileira e um símbolo do que o país conseguiu de mais vigoroso no mundo nos últimos anos. Depois de surfar o período da bonança global, a empresa e seu principal executivo, Roger Agnelli, são agora postos à prova.
É provável que sua batalha daqui para a frente não seja a do crescimento acelerado, mas a do aumento da competitividade frente aos concorrentes. Quando o mercado retrai, a realidade cruel é que uns têm de tirar dos outros. Para isso, Agnelli conta com as próprias estruturas da Vale, fortificadas após sua privatização, e com recursos naturais sem paralelo no mundo. A Vale é um exemplo natural por sua dimensão e sua importância para a economia brasileira. Mas é inegável que, hoje, o Brasil conta com setores inteiros com vantagens avassaladoras em relação à concorrência. É essa economia real - uma conjunção de produção, mercado, tecnologia, capacidade de trabalho e de gestão - que vai fazer a diferença daqui para a frente. É ela que poderá levar o país a um novo patamar no dia seguinte ao fim da crise. "O equilíbrio mundial entre Estados Unidos e China deve ser retomado com a continuidade do processo de absorção de milhões de pessoas no mercado, um fenômeno único nessa proporção na história da humanidade", diz o economista Samuel Pessoa, chefe do Centro de Crescimento Econômico da Fundação Getulio Vargas. "O crescimento vai voltar e, com as necessidades que o mundo tem, vem aí uma nova revolução verde. Nesse cenário, o Brasil será ganhador." É preciso lembrar que o novo quadro não poupa ninguém - todos os países e, por conseqüência, todas as empresas são em maior ou menor grau atingidos. Se o Brasil está sentindo o aperto do crédito - e está, de forma profunda -, o mesmo ocorre com praticamente todas as nações do mundo. A redução de encomendas de minério de ferro não alcança só a Vale mas também suas rivais BHP, Rio Tinto e Anglo American. Sob essas condições é que as vantagens comparativas do país e de cada empresa precisam, mais do que nunca, ser identificadas, valorizadas e utilizadas com competência. Para verificar como o Brasil é visto no exterior, EXAME realizou, ao longo do mês de setembro, uma pesquisa com executivos de 69 das maiores corporações globais, listadas pela revista americana Fortune 500. Seu objetivo era comparar o país com os outros componentes do chamado bloco do Bric - Rússia, Índia e China - e ainda com o México. O Brasil ficou na dianteira, pouco à frente da China. Das 16 questões apresentadas, o país obteve a melhor nota em dez, incluindo a última, na qual os executivos foram instados a dar uma média geral a cada país, considerando todos os aspectos abordados. Isso justifica a conclusão de um recente relatório do Bradesco enviado a clientes: "No dia seguinte à crise, o Brasil se habilita como um dos países com o mais diversificado leque de oportunidades de negócios com grande potencial de crescimento". Um quesito em que o Brasil está melhor que os competidores - e que não sofre nenhuma ameaça com a crise mundial - é o da disponibilidade de recursos naturais. Nesse ponto, vale notar também que o país começa a fazer melhor uso de seus dotes - e o mundo se dá conta disso. Um trabalho publicado recentemente pelo centro de estudos britânico Demos, de autoria da socióloga inglesa Kirsten Bound, destaca os avanços brasileiros no aproveitamento dos recursos naturais. A força inovadora nessa fronteira se expressa em setores como os da agricultura, dos biocombustíveis, da exploração petrolífera e da extração mineral - áreas que também são temas de reportagens especiais de EXAME nas páginas a seguir. A criação de um mercado de carros com motor flex e a utilização de uma matriz de energia com 45% de fontes renováveis chamaram a atenção da pesquisadora. Mas seu estudo identifica também como fatos importantes, ainda pouco conhecidos na Europa, avanços brasileiros em frentes de pesquisa como a do software livre e da genética. Kirsten Bound ressalta a crescente concentração de conhecimento e de pessoal qualificado em empresas como Embrapa, Natura, Gerdau, Petrobras e Vale. "O caminho que o Brasil está seguindo desfaz o conceito comum de que economias fundamentadas no conhecimento ocupam um extremo oposto ao das que são fortes em recursos naturais", diz ela. O caso brasileiro desafia essa visão linear porque oferece uma trajetória alternativa em que a capacidade científica e tecnológica não está separada, por oposição, dos recursos naturais, e sim ligada a eles. É um modelo no qual a pesquisadora alinha também Austrália, Canadá e Finlândia - países com os quais propõe que o Brasil deveria ampliar a parceria e a troca de boas práticas. No agronegócio, a posição que o Brasil já alcançou, com aumentos extraordinários de produtividade no campo, tende a se destacar. Primeiro, porque um mercado mundial de 6 bilhões de pessoas - boa parte delas em países em desenvolvimento - não vai simplesmente evaporar, embora deva reduzir temporariamente o consumo. Depois, porque, mais uma vez, em tempos de crise a competitividade tende a prevalecer. Nos próximos dez anos, segundo a consultoria Agroconsult, os agricultores brasileiros praticamente duplicarão a produção de soja e de milho. No caso da soja, o Brasil deve alcançar 108 milhões de toneladas - quase tanto quanto a produção atual de todos os grãos - e desbancar os Estados Unidos da liderança. "A China vai importar quantidades crescentes e só o Brasil tem condições de atender o maior consumo de grãos e de carnes, porque nossos concorrentes, americanos e argentinos, têm limitações físicas para a expansão", diz Douglas Nakazone, economista da Agroconsult. O governo tem responsabilidade fundamental na travessia da fase atual e na definição do que será o futuro. As empresas e os cidadãos têm seus limites de atuação determinados também pelas decisões tomadas pelos governantes. Arcar com uma carga tributária da ordem de 37% do PIB é um dado da realidade brasileira. Enfrentar as condições das estradas e dos portos na hora de fazer circular as mercadorias é outro. Ambos tiram boa parte da competitividade que empresas dos mais diferentes setores conseguem obter com sua eficiência do lado de dentro de seus portões. Mais do que nunca, não é hora de lamentar essas lacunas, acumuladas em décadas de decisões erradas ou falta de decisão. Nem de chorar pelo que deveria ter sido o aproveitamento dos bons ventos internacionais dos últimos cinco anos. É urgente atacar os problemas. O país precisa, além dos pacotes imediatos de recuperação da liquidez - como a liberação pelo Banco Central de mais de 100 bilhões de reais retidos em depósitos compulsórios dos bancos - e de prevenção contra uma crise sistêmica, retomar uma agenda de reformas que ficou pelo meio do caminho. Algumas dessas, como a tributária, estão paradas no Congresso e basta vontade política para reimpulsioná-las. Em outros casos, como o de reduzir a infernal burocracia que atravanca o empreendedorismo e os negócios em geral, bastam decisões administrativas, ao alcance dos governantes de plantão. "O Brasil tem uma das economias mais diversificadas entre os emergentes, com estabilidade econômica e um forte apoio público ao presidente da República, o que deveria servir de plataforma sólida para adotar as reformas necessárias", diz Suzanne Rosselet, professora da escola de gestão IMD, da Suíça, e co-autora do ranking anual de competitividade elaborado pela instituição, contando com a parceria local da Fundação Dom Cabral. No ranking deste ano, em relação ao anterior, o Brasil melhorou da 49a para a 43a posição entre os 55 países analisados. Para subir mais na classificação, de acordo com Suzanne, entre os problemas a ser enfrentados pelo país estão a ineficiência das instituições públicas, a corrupção, a dificuldade de empresas nascentes de obter capital (o que pode piorar com a crise de liquidez) e a baixa qualidade do sistema educacional. Os executivos globais que responderam à pesquisa de EXAME apontaram como pontos em que o Brasil está atrás dos competidores também a burocracia e a deficiência na infra-estrutura de transportes. Nada que os brasileiros não saibam. Em tempo de crise, é hora de começar a fazer as lições que o mundo real exige - até para melhor aproveitar o que o Brasil tem de melhor.


Por José Roberto Caetano Revista EXAME,

Um comentário:

Héber Sales disse...

A propósito, ouvi uma frase genial essa semana: "a crise não parece ter chegado ao Brasil, mas o medo da crise certamente chegou".
Abs
Héber